sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Três Dimensões



O vício mais inquietante é aquele que não tem uma resposta fácil. Uma única substância que o dispare. É mais fundo que isso. É aquele vício que só você parece ter. Alguém nasce, diz a fábula, vem um anjo e aperta seus lábios com o dedo, e conta um segredo que é impossível de se lembrar depois: "Tu vais procurar tal coisa, a vida inteira. E quando encontrar, não vai ser o bastante".

Essa garota, por exemplo. Era viciada em rostos. Pelo menos, foi assim que ela se descreveu numa dessas conversas de cinco minutos que o tempo permite desdobrar e multiplicar de maneira estranha. Tinha um bloquinho de papel interminável e desenhava rascunhos de pessoas na rua. Qualquer pessoa. Fiquei imaginando que tipo de coleção a garota fazia com aqueles desenhos, ou quem ela estava procurando, ou se estava procurando a si mesma no rosto dos outros - essas filosofias de prateleira promocional que a gente se pega praticando quando o nível de serotonina anda muito baixo ou o teor alcóolico, muito alto. Ou ambos. Ou quando a gente simplesmente não tem o que fazer.

Era o último caso.

- "É seu vestido de noiva?", perguntei, escape ordinário para começar uma conversa, vendo-a rascunhar o que parecia ser uma mulher num longo branco.

Ouvi um grunhido estranho vindo da direção dela e demorei um pouco para entender que aquilo era uma risada. Ela tinha se mantido de cabeça baixa e em completo silêncio até então. Quando me viu encarando-a curioso, pareceu sentir vergonha de si mesma, voltando a baixar a cabeça. "Na verdade não sou eu no desenho", ela finalmente respondeu, tímida. E o diálogo foi adiante, sobre tudo e nada, enquanto ela terminava seu esboço.

Foi lá pelo terceiro ou quarto tópico de discussão adoravelmente sem sentido que a desenhista ergueu o bloquinho de papel, sua noiva de grafite totalmente concebida em linhas ágeis e firmes. Apontou, sem cerimônia, para uma outra garota poucos metros à nossa frente, no balcão da conveniência, ancorada ao ombro de um sujeito que atormentava o balconista com seu humor de bêbado. Vi aquela personagem trágica - o cabelo solto descuidado, o queixo quase ausente, o olhar opaco - e comparei: eram de fato idênticos aos do desenho. Mas a modelo de carne e osso não usava um vestido longo branco. Ao contrário, o pouco que usava seria o bastante pra fechar as portas de qualquer igreja num raio de quilômetros.

- "Ela não está vestida de noiva", tive a cretinice de comentar.

- "Eu sei", respondeu a artista, sorrindo torto. "Mas adoraria estar".

Silêncio. Só então apurei o olhar: a garota do balcão, já não mais parecendo assim tão jovem, de braços atados ao ombro do seu homem, como afogado que se agarra a uma pedra sem perceber que isso o fará afundar ainda mais rápido. O namorado/amante/whatever (marido é que não era), bronco e embriagado, caprichando no papel de idiota, e ela lá, sem dizer palavra - nem censura, nem aprovação. Apenas ali. Aquele tipo de mulher que se sujeitaria a qualquer traste apenas para não ficar sozinha. Disposta a inventar o final feliz que a vida teimava em não lhe dar. Era o vício dela.

Voltei para a artista ao meu lado disposto a elogiar sua visão, tão além do imediatismo que um rosto pode mostrar. Mas ela não estava mais ali.

Talvez eu tenha passado tempo demais analisando o objeto do desenho. Ou talvez meu vício seja minha própria subliteratura: imaginar histórias tolas para tentar escrever pessoas - uma vez que lê-las parece cada vez mais difícil.